Ímpeto, medo e amor
Meu pai diz que meu vô iria gostar de me ver nadando.
— Sabe quem ia gostar de te ver nessas travessias por aí? O pai.
Largou essa um dia quando estávamos na praia, olhando o mar.
Meu vô era nadador raiz, do mar nem um pouco amigável do litoral gaúcho. Decerto ia achar graça da parafernália toda: touca, óculos, relógio, traje, vaselina, gel de carboidrato, boia de sinalização.
— No meu tempo não tinha nada disso — imagino ele dizendo.
Meu vô era destemido. Ele ia.
Meu pai conta que ele parou de passar a arrebentação depois do dia em que precisou aceitar ajuda. Aceitar, não pedir, porque isso ele não faria. A força nas pernas já não era mais a mesma, e ele foi obrigado a aceitar a mão estendida do meu pai pra passar. Depois disso, não foi mais até o fundo.
Pode parecer um gesto orgulhoso, quase birrento, mas vejo uma certa sabedoria aí. Uma nobreza, ainda que amarga, em reconhecer algo que já não se é mais capaz de fazer.
Talvez, para o meu vô, o mar simbolizasse um espaço de força e independência que ele gostaria de preservar exatamente assim. E, não havendo mais força e independência para estar lá sozinho, será que ainda faria sentido pra ele? Eu consigo entender.
*
Minha vó não.
Ela estaria aflita na praia esperando ou em casa, rezando no horário das provas, até que eu ligasse pra dizer que saí viva.
Quando me mudei pra Porto Alegre, sempre que chovia ela me ligava, preocupada que algo pudesse acontecer. "Vó Zenaide" era o nome que aparecia na tela. E naquela época chuvas ainda eram só chuvas.
Chovia torrencialmente no dia em que ela morreu, e a ligação que recebi não foi dela. "Vó Zenaide" nunca mais apareceu na tela do meu celular.
Ela teria medo, mas era um medo diferente. Tenho certeza que, pelas pessoas que amava, ela também enfrentaria o mar. Porque ela tinha uma força maior do que todas as outras, maior do que qualquer medo: amor.
O único amor incondicional que conheci até hoje.
*
Gosto de pensar que os dois gostam de me ver nadando. De algum lugar. E que a nadadora que estou me tornando traz um pouco de cada um deles — meu vô e minha vó.
Quanto mais provas eu nado, quanto mais eu me desafio, mais percebo o quanto minhas braçadas são forjadas nesses pilares: ímpeto, medo e amor.
O ímpeto de ir, tentar, arriscar, continuar. O medo que sempre me acompanha — cada vez mais como um conselheiro do que como um obstáculo. E o amor.
E talvez justamente esse seja ainda o meu ponto fraco.
O amor que tantas vezes transborda e não sei pra onde direcionar. Ou erro a dosagem, ou coloco nos lugares errados, ou, sem saber o que fazer com ele, até mesmo negligencio.
Por outro lado, quando penso na minha vó e no que sinto dentro d'água, não sobra espaço pra qualquer dúvida: esse amor é uma força imensa.
O sentimento de amor pelo qual sou tomada quando estou nadando — pela natação, pela água, pela vida, por estar viva, pela natureza e tudo ao meu redor naquele momento — é algo que transcende qualquer descrição ou explicação.
E eu tenho essa força comigo.
Aprender a usá-la a meu favor (e não contra mim) é, quiçá, uma questão de treino. Do mesmo jeito que, como todos os bons nadadores: estou continuamente aprendendo a nadar.
Conexão Porto Alegre - Ubatuba
Dia 31 de maio, nadei 6 km em Ubatuba. Foi meu maior desafio e minha maior distância nadada até hoje. Pulei, de propósito, a edição de maio porque pensei: vou escrever sobre a prova.
Mas não foi esse o texto que surgiu. Em vez disso, o que encontrei — ou me encontrou — foram as palavras desta edição, sobre como duas pessoas que já morreram influenciam, no presente, a pessoa que sou e me torno a cada dia. A possibilidade de que somos, não condicionados ou definidos, mas marcados por forças que desconhecemos — por mecanismos que já estavam em operação antes de existirmos.
Terminei de escrever e passei pra janela do lado, onde me esperava a última edição da
. Qual não foi minha surpresa ao encontrar ali o conceito de epigenética — e possivelmente a menção mais calorosa que esta newsletter tão despretensiosa já recebeu.Além de nadar 6 km, encontrar o
, que eu leio por aqui há tanto tempo, foi sem dúvida o outro ponto alto da passagem por Ubatuba. Foi como conversar com alguém que eu já conhecia. Esse é o tipo de encontro que me faz pensar em como podem existir pessoas parecidas com a gente por aí, mentes-irmãs em sintonia, sem que sequer façamos ideia — e no poder da escrita pra, de vez em quando, fazer uma tropeçar na outra.Em homenagem ao Nathan (e porque, no primeiro texto dele que li, foi exatamente o que me fez pensar “hm, vou gostar dessa newsletter”):
vai pela sombra e fica na paz de Bowie.





É tão bom quando a gente “ouve” o que a edição pede e segue esse fluxo. Coisas que só amigos de newsletter entendem haha foi muito bom me conectar com você ao vivo e agora aqui no texto! ❤️