Fôlego
“De onde tu tira fôlego pra nadar 5 km?”, minha tia me perguntou.
“Treino”, respondi.
E o que mais poderia dizer?
Entendo que às vezes talvez as pessoas esperem uma resposta diferente, mas não existe mágica, talento inato, fórmula ou receita milagrosa. Só o que existe é treino. Prática. Como na escrita.
Esse tipo de pergunta me faz pensar que esquecemos (se é que um dia soubemos de fato) o poder da consistência. Do quão longe é possível chegar fazendo um pouco todos os dias, sem abandonar o barco na primeira dificuldade, no primeiro dia ruim.
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Para onde vai a raiva?
Li essa pergunta na newsletter do Chico Canella.
Para onde vai a raiva não no momento em que sentimos, mas depois. Depois que o momento passa, depois que os dias passam. E, como o Chico, também não tenho uma resposta. Mas de uma coisa tenho certeza: a raiva não desaparece. Assume outras formas, talvez, mas não deixa de existir.
O exercício é um dos meios pelos quais canalizamos sentimentos negativos. Imagino que uma boa dose deles literalmente escorra de nós em forma de suor. Ou quem sabe adentre a cadeia de produção da endorfina, se transmutando em algo prazeroso.
Às vezes, é como se a raiva adormecesse. Ou se tornasse aquele objeto na sala a que já não prestamos atenção, cuja presença não causa nenhum mal propriamente, mas que nem por isso deixa de estar ali.
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No final de janeiro, nadei a prova mais desafiadora da minha breve trajetória até aqui. Não pela distância, mas pelas condições da água. Apesar de estar relativamente familiarizada com marolas e águas mexidas, nunca tinha encarado a água naquelas condições. Talvez por alguns trechos, mas não uma prova inteira.
Foram três quilômetros sendo empurrada em todas as direções, com ondulações que pareciam vir também de todas as direções. Estabilidade do nado? Impossível. Manter uma boa técnica? Esquece. Nadar em linha reta até a boia? Não hoje.
Em condições assim, é um erro tentar manter o mesmo padrão de nado que usaríamos na piscina ou em um dia de água lisa. Não adianta lutar com o movimento da água — é preciso se ajustar a ele. Encaixar o corpo nas “ondas” pra pelo menos flutuar melhor e respirar sem engolir água, quase uma espécie de surf horizontal em que nós mesmos somos a prancha.
Não brigar com a água; se ajustar ao movimento dela.
E talvez seja o mesmo com a raiva.
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Nos treinos de natação, existem testes que fazemos para determinar alguns parâmetros e zonas de intensidade. Um deles é o teste de 1000. O famoso e temido T1000.
Em muitos sentidos, me preocupo mais com esses testes do que com as próprias provas. Como se um resultado aquém do esperado em um dia ruim (pode acontecer, acontece com frequência) automaticamente fosse a sentença da minha incapacidade.
No último T1000, eu não estava em uma semana particularmente uau, mas vinha de um histórico de meses vendo os tempos baixarem. A1 virando A0, A2 virando A1, A3 virando A2 e assim por diante. Já era evidente que meus parâmetros tinham mudado.
“Te dá um pouco mais de crédito, criatura. Olha como foram os últimos meses”, foi o que me repeti até o dia do teste.
No dia, segui à risca a estratégia traçada. E esses foram os únicos comandos mentais que me repeti — a contagem das chegadas e as mudanças de intensidade calculadas para cada trecho. Decidi olhar no relógio apenas caso precisasse checar a distância, o que fiz uma vez, mas sem ver o tempo, pra não correr o risco de comprometer ~a cabeça.
No final, deu certo. Baixei o tempo e, como previsto, ajustei meus parâmetros pra uma nova zona. Mais uma vez, eu mesma me provando que posso, devo e preciso confiar mais em mim e não nas vozes que me deixei ouvir por tempo demais.
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Agora passou.
Foi quase por acaso, mas ler essas palavras trouxe um conforto que eu já não esperava encontrar.
Uma espécie de confirmação que eu buscava desde que tudo aconteceu. Não porque ainda colocasse o que vivi em dúvida, mas pela necessidade de compartilhar de alguma forma. Mesmo que sem dizer nada.
Não preciso saber dos outros esqueletos que habitam aquele armário, mas saber que mais alguém sabe, que mais alguém vê, independentemente de o quê —
parece suficiente.
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No fim, a pergunta é outra.
Não de onde vem o fôlego pra nadar 5 km, mas de onde ele viria se eu não nadasse.
Oxigênio e gás carbônico
~ Babi Carneiro: pensar em palavras
~ Babi Bom Ângelo: escrita coletiva
~ Luisa Pinheiro: nem sempre é preciso falar
~ Taís Bravo: palavra-maná
~ Júlia de Carvalho Hansen: se a gente respira oxigênio, é porque entregamos gás carbônico
Uau. Li em um fôlego só e cheguei ao final sem ar. Você escreve muito bem!