Fazer parte de um time
“Virei uma chave aqui hoje.”
Foi esse o primeiro pensamento e o primeiro comentário que fiz na chegada dos 8 km de Bombinhas.
Agosto.
Inverno.
Água a 17ºC.
Rajadas ~amigáveis de 20-30 km/h.
Corrente contra.
Não estava nos meus planos estrear em uma distância nova nessas condições. Mas, quando vi que a prova entrou no calendário da assessoria, a decisão foi imediata: companhia é sempre bom. E, nesse caso, fez toda a diferença.
*
Ao longo da semana anterior, acompanhamos a previsão: nada antes, nada depois – o único dia com um vendaval previsto era o dia da prova. A previsão apontava ventos de 35 km/h, com rajadas passando dos 50 km/h.
Na véspera da prova, saímos pra jantar e, na volta até a pousada, estar na rua era assustador: tudo voava. Ninguém dormiu direito, tamanhos eram o barulho e a força do vento.
Como vamos nadar amanhã?
No dia seguinte, para surpresa de todo mundo e contrariando a previsão, o vento amenizou (não parou, continuava forte, mas longe do apocalipse que tudo indicava). De fora, o mar parecia tranquilo. Mas nosso treinador avisou: “Vamos pegar a maré vazando. Além do vento, vai ter corrente contra, vocês vão ter que fazer força na volta”. E, mesmo preparada para o pior, é difícil descrever o que foi essa volta.
Duas voltas de 4 km cada, dois pra ir, dois pra voltar.
Se na ida vento e corrente nos empurravam, o que nos esperava lá atrás, depois do primeiro contorno de boia, era um cenário de guerra. Foi como entrar em outro mar. As ondulações e a força da água faziam aquilo parecer impossível. Eu nunca tinha pegado um mar naquelas condições. Me assustei, balancei, a praia longe demais.
Até que percebi que, pelo menos na primeira volta, essa briga era só mental. E me lembro do exato momento em que me dei conta: “Uma volta dessas tem no máximo 4 km. Tu nem fez força ainda e tem treino pra muito mais do que isso. Então tu não tá nem cansada, tá só assustada. Isso é cabeça. Encaixa a respiração, encaixa na água e vai”.
Também não sabia que o mental estava tão em dia.
Continuidade é o nome da mágica nessas horas.
Em condições assim, quanto mais a gente para, pior fica. Perdemos o ritmo, o nado desencaixa, e a cada retomada é preciso começar tudo de novo. Por isso o melhor é tentar não parar.
A esperança veio quando comecei a ouvir o organizador da prova de longe no microfone. “Ok, vou chegar. E quem passa uma vez passa duas. E a segunda volta há de ser melhor porque vai dar pra corrigir os erros da primeira”. E assim foi – é a única vantagem de provas com duas voltas.
Não brigar com a água, dançar com a água, mas que dança difícil dessa vez!
Eu não sabia que tinha natação pra encarar aquilo tudo. Vi nadadores e nadadoras que tenho como referências dizendo que passaram trabalho ou mesmo que pensaram em desistir. E vi que sou muito mais forte e capaz do que eu mesma me dou crédito. Se eu ainda tinha alguma dúvida da nadadora que já sou e da que estou me tornando, depois dessa, acho que é hora de começar a deixar de ter.
Mas vou desmontar o clichê que o povo adora repetir por aí e dizer que:
todos os mares calmos em que já nadei fizeram SIM a nadadora que hoje é capaz de encarar a água nessas condições.
É na dificuldade que a gente vira a chave e passa de fase, mas ninguém chega lá sem base.
*
Quando era uma criança que assistia Sessão da Tarde, sempre que o filme girava em torno de algum esporte, ou se em qualquer cena aparecesse um quarto de criança cheio de medalhas e troféus, eu ficava imaginando como deveria ser fazer parte desse mundo. Não o mundo das medalhas em si, mas o mundo de quem tem um esporte pra amar e chamar de seu. O mundo de quem faz parte de um time.
De alguma forma, sempre soube desse poder coletivo. E não tenho dúvida do quanto isso fez diferença nessa prova. Entrei na água feliz, tranquila, confiante, a energia lá em cima! E a prova inteira é outra quando a gente começa assim.
A energia positiva de todo mundo na véspera e antes da largada. O pessoal das provas menores na beira da água vibrando com a gente na parada pra hidratação entre uma volta e outra. Nosso treinador, que competiu também (e venceu!), parando ao longo da própria prova quando encontrava cada um de nós pelo caminho, perguntando se estávamos bem.
Eu quis muito viver algo assim. E essa sede de pertencimento já foi muito debatida na terapia. Não é que eu precise do reconhecimento, aprovação e parabéns de alguém ou de um grupo pra validar meus feitos. Eu realmente não preciso, ou nem estaria onde estou hoje.
Mas é tão ruim assim querer?
Querer fazer parte de um time, querer a parceria de um treinador e profissional digno, querer ter por perto pessoas que vivem o que eu vivo e buscam e amam o mesmo que eu? E acreditar que mereço, de fato, tudo isso? Que mereço companhias como essas, que me esperam de braços abertos pra comemorar na chegada de uma prova?
Eu acho que não.
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