Buraco
Olhando de fora, pode parecer monótono:
— Mas o que é o treino? Vocês só ficam indo e voltando de um lado pro outro? — perguntou um amigo um dia.
Sim. E absolutamente não.
Pode parecer que não cansa:
— Mas natação não queima — ouvi outra vez, e quando percebi já tinha deixado sair:
— Se não queima tu não tá treinando.
Pior: pode parecer simples.
— Olhando de fora parece tão fácil.
A mais clássica.
Olhando de fora, qualquer coisa pode parecer tudo — menos o que é de fato.
*
Além dos esforços pra aprimorar a técnica — uma busca que por si só nunca termina —, a natação envolve todo um trabalho de percepção e dosagem de ritmos e intensidades.
Como dosar diferentes intensidades em diferentes distâncias. Como encaixar um nado progressivo nas distâncias maiores. Como fazer a troca de intensidade dentro de uma mesma distância. Como manter uma intensidade alta com um intervalo apertado.
É assim que uma série de 10x200 se torna um desafio muito (mas muito) mais complexo do que nadar 2 km.
Hoje, essa é minha luta maior.
Eu levei anos treinando só pra começar a acertar essa dosagem em distâncias de 100, 200, 300 metros. Isso porque, antes de acertar, a gente precisa perceber o que muda no nado — do ritmo da respiração à velocidade de rotação do tronco e à frequência das braçadas. E ter consciência e controle o suficiente pra fazer essas mudanças na hora certa.
É muita coisa. É um mundo de detalhes. E se a cabeça não estiver 100% focada, 100% no lugar... Os padrões errados voltam ao menor descuido. Porque nada disso acontece no automático.
*
Eu deixei escapar. Até agora não sei como, mas deixei tudo escapar. Ouvia meu professor gritar num misto de ira e frustração sem ter o que responder de volta.
— O que é que tá acontecendo contigo? Parece que desaprendeu tudo — dizia ele nos melhores momentos.
Eu não sabia.
Passei semanas no escuro, entre a frustração, o desespero e a confusão mental. E até agora não sei o que aconteceu. Como é possível a gente simplesmente apagar algo dessa forma?
Às vésperas de viajar por quase um mês, ele me chama pra conversar uma última vez. E de repente, enquanto ouvia ele rememorar todo o nosso percurso juntos, enxerguei.
A sensação foi de sair de um transe.
*
A natação tem tanta cabeça envolvida.
Anotei lembretes mentais no estojo do óculos e comecei a reler e mentalizar todos os dias antes de entrar na água. Parece bobo, e talvez seja mesmo, mas tem ajudado.
Se metade de tudo o que fazemos na água é cabeça, por que no aquecimento e no treino seria diferente?
Fiz as pazes comigo mesma e com a água. Recuperei parte do que tinha deixado escapar. Ainda sei nadar e, mais importante: ainda sei treinar.
*
Comecei a escrever esse relato em agosto.
De lá pra cá, deu tempo de voltar pro eixo, nadar duas provas, conhecer o mar a 19°C com sensação térmica de 12°C, atravessar a arrebentação e voltar (assunto pra outra edição).
Nadar é difícil. Treinar, ainda mais. Fazer bons treinos — nem se fala. (Desconfie sempre de quem faz parecer fácil.)
Mas a verdade é que, com todos os altos a baixos (e tantas vezes mais baixos do que altos), nada nunca me deu tamanho senso de propósito nem trouxe tantos retornos positivos quanto a natação. Nem mesmo a escrita e a literatura, onde coloquei tanta energia por tanto tempo (assunto pra outra edição também).
É por isso que, mesmo quando me vi num buraco como o que conheci em agosto, talvez não tenha conseguido pensar em outra solução a não ser o mantra entoado pela Dory:
continue a nadar.
De onde vem essa certeza inabalável de que é preciso continuar? De que é preciso estar lá de novo no dia seguinte insistindo e dando a cara a tapa mais uma vez, independente da profundidade do buraco? De que a água, seja do jeito que for, é o lugar onde devo estar?
Se um dia descobrir, escrevo.
O fim e outros pormenores
~ Lígia Ximenes: desobedecer os cânones
~ Betina Neves: ficar com o problema
~ Laís Webber: faz sentido contar os anos?
~ Clara Vanali: somos menos adultos por não ter filhos?
~ Daniel Galera: o presente pertence ao domínio do fantástico
~ Hugo Pontes: o fim está aqui
Bonito relato da natação! Realmente a cabeça mergulhada não pode desfocar, se não todo fluxo de movimentos ficam bagunçados. É seguir nadando, seguir em frente, seguir respirando.